quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Anjos da Guarda


Quando menino minha mãe me ensinou a rezar o "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador. Se a ti me confiou a piedade Divina, Sempre me rege, me guarde, me governe, me ilumine. Amém".
Durante anos, antes de dormir, apelei ao meu Anjo da Guarda por uma noite boa e saúde para o resto da vida. Sempre acreditei na existência dele.

Hoje, vejo que os santos, assim como os anjos, não estão mais nos altares, eles cruzam conosco nas ruas.

O diagnóstico de câncer me deu a certeza de que tenho mais que um Anjo da Guarda - uma legião deles à minha volta. Se o diagnóstico me fez dramatizar, a princípio, a doença ("por que bem eu, meu Deus?"), a chegada paulatina dos meus Anjos me fez ver a tragédia por um outro prisma ("Por que não?") e aceitar o câncer com resignação, disposição e alegria.

São muitos, hoje, os meus Anjos da Guarda.

Eles me cercam e amparam desde o dia 12 de abril de 2012, quando o diagnóstico de um tumor ("tem mais chance de ser maligno", garantiu o otorrinolaringologista) puxou literalmente o meu tapete, me obrigou a ver que a vida como passageira e abriu uma porta para uma experiência que jamais imaginei vivenciar - julgava inatingível por qualquer doença. Total falta de conhecimento da vida. Estava preocupado com a minha profissão e o trabalho para pensar em mim.

Os meus Anjos da Guarda, pasmem!, têm nomes, sobrenomes e profissões. A maioria deles está no Real Hospital Português, no Recife, um mundo de doenças e de curas.

Outros, como o médico e cirurgião João Veiga, entraram na minha vida bem antes da doença e foi ele, dr. João Veiga, quem abriu o Portal dos Anjos da Guarda que me cerca, apoia, me dá força e diagnósticos precisos que me fazem ir em frente (por ordem de chegada em minha vida):

Os médicos Sérgio Azevedo (cardiologista que me deixou apto para a biópsia), Bartolomeu Melo (cirurgião de tórax e cabeça, que fez a biópsia e através do qual conheci o Seu Lula, pequeno e idoso trabalhador rural da cana de açúcar queimado pelo sol que ficou curado de um câncer na corda vocal, igual ao meu) e Jonathan Melo (oncologista que acompanhou as 33 sessões de radioterapia e me ensinou muitas coisas para eu passar a conviver melhor com a doença e com os demais que me cercam).

Deles recebi muita atenção, tratamento digno e carinho e compreensão. Através deles pude constatar o grau de profissionalismo no Real Hospital Português, o que me emociona e me provoca admiração.

Outros profissionais, porém, estiveram muito mais próximos de mim no Real Hospital Português durante o tratamento, quando descobri que não são apenas profissionais capazes e dedicados, mas seres humanos incansáveis, que estão sempre dispostos a dar apoio, conforto e estímulo aos pacientes de câncer, sejam eles quem for. Os que se apresentam com carteirinha de plano particular ou através do SUS.

Sou testemunha de cenas inesquecíveis de pura bondade humana e fui beneficiado pela atenção e carinho desses profissionais. Assim como os pacientes da radioterapia que todas as manhãs recebem um aceno, um aperto de mão, uma palavra amiga, um estímulo e aquele sorriso quando a aparência e a disposição, as nossas, já não são das melhores por causa da violência da quimioterapia, dos remédios e daquele desânimo que muitas vezes toma conta da gente quando a voz some e tudo parece não dar certo.

No meu caso, a vida me privou por um bom tempo da minha liberdade de expressão.

A eles, então, as minhas mais doces lembranças:

Mariluce, Jodielson, Maria, Sérgio, Fernanda e Manuela (técnicos que merecem o maior respeito pelo trabalho que fazem e pelos cuidados com o paciente).
Tatiana (enfermeira que me ensinou a cuidar melhor de mim).
Fátima, Glauce, Cleine, Nevinha e Dona Carminha (da recepção onde ouvi sempre com muito prazer e alegria aquele diário e sonoro "Bom-dia, Seu Paulo").
Lúcia e Simone (da limpeza, das quais tive sempre uma palavra de estímulo).

Não conheço ninguém que sente falta da radioterapia e quimioterapia (que não experimentei, graças a Deus), nem dos remédios, os enjoos, as dores no corpo e aquele desânimo que toma conta da gente, muitas vezes. Mas confesso que sinto, sim, falta, apesar da máscara que me prendia à mesa e me fazia respirar apenas pelo nariz, disparava o coração e forçava a imobilidade numa mesa gelada, em uma sala gelada (o que era bom) e envolto por um aparelho imenso.

Sempre soube quando a sessão iniciava e terminava pelo ruído da máquina, mas só relaxava e voltava a respirar normalmente quando a porta daquela sala se abria (que maravilhoso e mágico ruído aquele). E, ainda do lado de fora da sala, uma voz me garantia, com convicção e certeza: "Acabou, meu querido, acabou".

Era a Mariluce. Sempre a doce e a atenta Mariluce que retornava à sala com seu enorme e generoso sorriso para retirar aquela máscara e me libertar daquela imobilidade que durava um minuto, mas parecia não terminar nunca. Sim, sinto imensa falta daquele aviso da Mariluce que me fazia renascer.

Na radioterapia do Real Hospital Português aprendi a melhor lição de minha vida ao conviver com tantos pacientes e conhecer histórias, dramas, dores, perdas e curas. Aos 64 anos, próximo da aposentadoria (2013) e hoje, por certo, um ser humano muito melhor. Ninguém sai ileso de um câncer sem mudar o seu jeito de ser. É o preço do pedágio para continuar vivo.

A lição? Ela é bem simples: o câncer odeia o amor, o carinho e a alegria. Meus Anjos da Guardam sabem muito bem e me deram tudo isso.

A eles, o meu mais profundo e sincero agradecimento.

Ao Real Hospital Português, a minha maior surpresa. Costumo dizer, em tom de brincadeira, quando quero descrever o meu entusiasmo pelo hospital, que o RHP é tão bom que jamais encontrei um papel no chão em suas dependências, por onde tive a sorte de cruzar com seres humanos de primeira categoria.

Paulo Sérgio Scarpa
Recife - Setembro 2012

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